terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Hora da partida

Soavam as horas. Horas x. A noite soprava aquela brisa de verão que apesar de pedir casaco, convida também a longas conversas na varanda, a observar o céu estrelado e limpo nas redondezas de uma aldeia. Isto para os mais velhos. Aquela menina de 9 anos, estava habituada a ver a novela junto da avó e adormecer no seu quarto decorado de colagens. Estranho como as suas ideias eram sem dúvida espectaculares para ouvir um sermão. Fazia desenhos de tudo o que gostava, recortava e colava na parede com cola e não com fita. Posso dizer que ainda hoje o papel e a cola não saíram completamente. Deitou-se na cama de colcha aos ursos abraçados. Fechou a porta esmurrada...tanta história tem aquela porta! Ninguém sabe que o buraco foi feito por uma mão de um homem enraivecido. Ela sabia, mas como criança, a inocência levava a colocar o amor acima de todos os disparates que não iria NUNCA de maneira alguma imitar aos adultos. Rezou a oração do anjo da guarda:
"Anjinho da guarda
minha companhia
guardai a minha alma
de noite e de dia"




 E adormeceu. Partiu para o seu mundo feito de sonhos, emoções, cores e canções. Não vos posso garantir que o sonho era mesmo com este arco-íris todo, as noites apesar de demorarem longas horas parecem passar como a luz de um relâmpago aos nossos olhos. No curto intervalo de tempo que dormia, sei que estava a sonhar. Não havia noite que não tivesse sonho bom ou pesadelo, por mais sem sentido que fosse. Mas algo a perturbou, uma frase:

"Filha acorda. Vamos embora"

E um misto de choros e gritos, passaram diante dos olhos da menina. O irmão mais novo adormecido nem sequer acordava de tão pesados que eram os sonhos. Mas ela via o escuro, o colo do pai, lágrimas, súplicas, e despedidas. E só ficou marcada uma luz nos seus olhos antes de fechar a porta daquela casa antes de partir para a nova vida:

Três da manhã.


 E ainda hoje acordo com medo que a escuridão me rapte outra vez para uma outra vida. A esta hora que marcada ficou nos meus olhos de criança.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Amanhã será outro dia

Amanhã será outro dia.
Nova forma de acordar e puxar os lençóis, um pé igual ou diferente que pousa no chão. Será diferente o tipo ou quantidade de pardais que decidem cantar à janela. A quantidade de raios que atravessam o estoro e o vidro, a chuva que teima ou não em cair de uma só vez, mais ou menos gelada... Mudará o sentido do vento, o instante de cada ação. Mudará até o sítio do tempo na emoção, o prolongamento das mesmas duas horas de aula, no trabalho ou de almoço, conforme mudar a disposição, a companhia, a conversa...
Amanhã será outro dia.
Vão passar ao lado ou marcar presença risos de outros, pessoas a tropeçar, homicídios, suicídios, catástrofes ou simplesmente as notícias exageradas ou abafadas dos mesmos. Vai passar ao lado ou por cima de nós o estado do país, o país e o Estado, o preço do pão ou do peixe ou do gel duche do desconhecido que passa...ao lado.
Amanhã será outro dia.
Outro dia que parece que não passa ou que desejava que parasse e ficasse sempre igual, com as únicas páginas que o tempo guarda e não muda por mais diferente que se faça sentir. Memórias. De que ontem foi outro dia, e a mente mesmo assim aproveita algumas das suas "selfies" para ocupar um dos seus compartimentos. Ele vaza de memórias, dias que foram  dias, diferentes e acolhidos, agora amarrotados e transbordados da mente para o coração.
Amanhã será outro dia.
E amanhã deixa de contar o tempo... Deixa o tempo te contar os dias que tiveste e que te vai oferecer.


Clara Godinho